sábado, 25 de outubro de 2014

Elizabete, eterna criança que embala com sonhos as famosas coxinhas

Notícia publicada na edição de 24/10/14 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 003 do caderno Ela
Leila Gapy

ANÔNIMOS SOCIEDADE PÚBLICA


Numa terra encantada, fadas, madrinha e princesa escreveram uma história motivadora




 
Elizabete e dona Iolanda, moram juntas, finalmente, desde janeiro passado. - Alessandro Paiva


Era uma vez, um reino encantado chamado Céu, tinha anil predominante, nuvens de algodão-doce e estrelas de açúcar cristal. Fadas e duendes reinavam por lá. Passavam os dias dançando ao som das músicas do universo. Mas a cada novo ano havia a temporada de frio. Então as fadas reuniam-se em torno do feixe de luz matinal e escolhiam um anjo para enviar à Terra para, pelo menos assim, aquecer os corações dos humanos - a quem zelavam.

Foi no outono de 1996, que a fada Atrapalhada, recém-designada ao ofício, enviou o anjo Elizabete Marques para Terra. Míope e desajeitada, acelerou a velocidade e, por consequência, errou o destino, fazendo-a alargar o sorriso com a queda (o que depois os humanos deram o nome de fissura labiopalatal) e por fim cair num lar sofrido e desestruturado de Salto de Pirapora. Desesperada e com medo que o equívoco causasse confusão, Atrapalhada soltou do Céu uma flecha de amor.

Acertou em cheio o coração daquela que dois anos depois - e daí por toda a vida - seria na Terra a madrinha do anjo Elizabete, dona Iolanda Venceslau - uma paranaense que tinha acabado de mudar-se para Votorantim e que, por conta da flechada, optou por passar a própria vida cuidando e ajudando os anjos perdidos da Terra a encontrar um lar carinhoso. Como previsto, Elizabete nasceu princesa. Mas foi negligenciada até completar dois anos, quando Atrapalhada jogou uma poção mágica na casa que a menina habitava.

"Abracadabra! Não! É plém, plém, plém: Elizabete, agora você vai para a Casa de Belém", determinou a fada. E a princesinha foi abrigada na entidade votorantinense onde Iolanda trabalhava e trabalha, até hoje, cuidando de anjos que procuram um lar. "Ufa! Agora eu posso descansar! Até que enfim a madrinha Iolanda conheceu o anjo da "Bete"", gritou a fada do Céu. Foi então que dona Iolanda cuidou da menininha magrinha, desnutrida e com o sorriso rasgado. E foi esse mesmo sorriso largo, fácil e genuíno que roubou o coração da madrinha.

Viveram as duas, felizes e contentes por 11 anos no abrigo - período em que Iolanda percebeu o atraso mental da menina, causado pela negligência na alimentação e nos seus cuidados com a fenda profunda no céu da boca. "Elizabete fez cirurgias, não para encurtar o sorriso, mas para alimentar-se melhor. Não sei se foi por isso, pela cicatriz ou pelo atraso, mas não foi adotada. Às vezes acho que atrapalhei a adoção dando amor demais. Ela não queria ir com ninguém", conta Iolanda. É que Elizabete bem que tentou. Ficou oito meses com uma família substituta. Mas não conseguiu adaptar-se e voltou.

A fada Atrapalhada, lá do Céu, comemorava. "Está tudo dando certooo", cantarolava. Quando a fada-mãe Certona a viu saltitante, interessou-se pelo motivo da alegria. Atrapalhada não conseguiu mentir! Certona resolveu então remediar e provocou no coração da Justiça o retorno de Elizabete ao lar de origem. "Atrapalhada, não se culpe. Você não é a primeira fada a errar. Se não deu certo nesta, dará na próxima", afirmou. A princesa então voltou para o lar onde nasceu.

Mas Atrapalhada (apesar de atrapalhada) era perfeccionista e sabia que aquilo não ia dar certo e não cochilou. Deitava nas nuvens da ponta do Céu e empurrava as estrelas de açúcar só para enxergar melhor o lar do seu primeiro anjo enviado à Terra. E princesa-adolescente foi negligenciada novamente, apanhava constantemente. Sofrimento que durou cinco anos. A fada adoeceu ao sentir-se fracassada. Desesperada, a fadinha Novidade correu avisar a fada-mãe Certona. "Fada, por favor, ajude Atrapalhada, a luz interna dela morrerá de tanta tristeza. Seu anjo na Terra sofre demais", falou chorando e causando chuva no planeta inteiro.

Certona foi até a nuvem da ponta do Céu e viu Atrapalhada e sem forças. "Fiz tudo errado, fada-mãe. Elevei a velocidade, a menina ainda tem o sorriso parcialmente rasgado. Errei o destino, ela está triste. Precisa de carinho. Acertei o coração da madrinha, que agora ruma sempre de Votorantim para Salto de Pirapora para reivindicar o amor da princesa. Mas só dá em confusão. E agora?", apelou. Certona deitou-se ao seu lado e observou. Verificou a confusão. Refletiu e levantou-se.

"Fada Atrapalhada, embora errar seja humano, nós também não somos perfeitas - só de coração. Errar faz parte da jornada, serve-nos de aprendizado. E é nobre reconhecer e esforçar-se para consertar. Vou mandar uma flecha no coração da família de origem do anjo. Eles cederão à madrinha Iolanda e deixarão Elizabete partir com ela", garantiu. Certona subiu na nuvem mais alta, reuniu todas as fadas do Céu e juntas soltaram todas as flechas de amor que tinham. "Amar é deixar livreeeeee", invocavam. Neste dia, o pai biológico de Elizabete chamou Iolanda e disse: "A senhora quer ficar com ela? Ela é mais sua que minha. E te ama".

A princesa e a madrinha sorriram, abraçaram-se e partiram, felizes. Mas como nem tudo é perfeito na Terra, dona Iolanda reiniciou sua jornada junto de Elizabete a duras custas, numa família simples, composta por ela, o marido e quatro filhos. Ainda assim, a princesa-mulher, de 18 anos, mas com coração de criança, retomou os cuidados médicos. Atrapalhada deu uma forcinha e ajeitou as coisas na Associação dos Fissurados Labiopalatais de Sorocaba e Região (Afissore), que por sua vez, disponibilizou terapia semanal.

Elizabete recuperou a autoestima, a dignidade, aprendeu a andar de ônibus e arranjou um emprego numa padaria conhecida de Sorocaba. "Eu sou profissional. Organizo tudo, limpo. Finalizo os salgados", detalha a princesa-menina-mulher. "Ai, que alegria! Ela finaliza a coxinha mais famosa da cidade! Que vontade que dá!", comemorou Atrapalhada, dançando com a fadinha Novidade. Certona as viu de longe e espiou a terra. Viu que Elizabete ainda precisa aprender a se cuidar. Princesa-moleca, apaixona-se fácil, se expõe demais nas redes sociais e preocupa a madrinha.

"Tenho que vigiar dia e noite. Elizabete é boa menina. Mas é preguiçosa, precisa voltar a estudar. Tudo tenho que brigar para ela fazer", Certona ouviu dona Iolanda dizer. Apesar disso, a fada-mãe verificou que o índice de felicidade do anjo está elevado, e que por fim, Atrapalhada atingiu seu objetivo. O anjo aqueceu o coração de muitos humanos. Tanto é que a princesa Elizabete, que adora sertanejo, enquanto embala as coxinhas famosas sonha em um dia ser advogada: "Para defender os inocentes e prender os que batem", argumenta.

É por isso que recentemente, Certona promoveu Atrapalhada à fada Encantada, que sorriu com o reconhecimento. Ela sabe que terá que mandar várias flechas de paciência e saúde à Iolanda, mas pelo menos as flechas de amor e doçura já podem ser distribuídas para outras famílias humanas, porque na dos Venceslau já tem de sobra.

(Anônimos Sociedade Pública é uma série mensal de matérias que tem como objetivo contar histórias de pessoas anônimas da sociedade civil. As publicações ocorrem sempre na última sexta-feira do mês, neste mês de outubro, excepcionalmente, na penúltima. Sugestões de personagens envie para o e-mail: leila.gapy@jcruzeiro.com.br).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

Ouça a Rádio Votorantim